O livro Alma Menina é uma ficção-relato que reúne histórias da própria autora, histórias de pessoas próximas e outras histórias de que um dia se ouviu falar, permeadas por contos de poética fantasia e amarradas com o cordão de uma narrativa ágil e direta.
Enquanto conta os acontecimentos da sua vida, a protagonista Mari escreve textos repletos de sensibilidade e poesia.
Enquanto conta os acontecimentos da sua vida, a protagonista Mari escreve textos repletos de sensibilidade e poesia.
Confira abaixo um dos contos que integram a narrativa:
Malia já estava andando há horas pela floresta, sem
direção, quando repentinamente sentiu um cheiro bom, de incenso doce e
ervas secas. Logo percebeu, em meios às árvores perto dali, grossos rolos
de fumaça rosada que se elevavam ao céu.
Aproximou-se
devagar, escondendo-se atrás de arbustos. Encontrou uma mulher que, de
costas para ela, remexia suavemente um caldeirão gigante que repousava
sobre uma fogueira de chamas baixas.
A mulher
tinha longos e volumosos cabelos negros, enfeitados por pequeninas
flores vermelhas. Usava uma saia comprida e colorida, bordada em fios
dourados que brilhavam intensamente. A blusa branca de tecido fino
deixavam desnudos os seus ombros bronzeados.
Ela
cantarolava palavras estranhas, que Malia não conseguia entender. A voz rouca e
baixa parecia emanar mansamente das entranhas da terra, misturando-se à
doce fumaça rosada que Malia aspirava, sem nem mesmo perceber. Aquela cantiga
sedutora e melodiosa convidava-a a qualquer dança louca, inebriava-a,
entorpecia seus sentidos...
-Aproxime-se,
criança – a voz falou, suavemente.
Aquele
chamado pareceu retumbar na mente de Malia, brando, mas poderoso e
irresistível.
Malia saiu
de trás dos arbustos, pisando em nuvens. A mulher continuava a remexer
o caldeirão, ritmadamente, como se dançasse, repetindo ainda as mesmas
palavras de algum encantamento há muito aprendido. Ela não se virou quando
Malia deixou seu esconderijo.
-Venha,
criança, não tenha medo – a voz disse mais uma vez.
A menina
continuava a mover-se vagarosamente, hipnotizada. Já estava a menos de
três passos de distância quando a mulher deu a volta em seu caldeirão.
Malia sentiu-se despertar quando pode, enfim, vê-la de frente.
Mesmo
muito tempo depois daquele encontro, Malia não saberia descrever exatamente o
rosto que vira. Era bronzeado e tinha sobrancelhas finas e arqueadas, além
de profundos olhos negros que pareciam falar. Mas, de verdade, foi o sorriso
o que mais intrigou Malia. Os fartos lábios cor de carmim guardavam
dentes perfeitos e, só de vê-los, Malia poderia jurar que eles já haviam experimentado
todos os sabores do mundo.
-Pergunte
o que quer perguntar, minha criança - disse a mulher, e Malia pode sentir
um inconfundível aroma de canela quando ela pronunciou essas palavras.
A menina
não sentia medo, mas uma mistura de apreensão com encantamento. Não resistiu
realmente a fazer a pergunta que martelava em sua cabeça.
-Você é...
uma bruxa?
-E uma
cigana – a mulher respondeu, acintosamente.
-Uma bruxa
cigana?!
Uma risada
leve, quase imperceptível, brincou no canto dos lábios da mulher quando
ela esclareceu:
-Não, meu
bem... uma cigana bruxa.
Malia
pensou por alguns segundos, mas não soube encontrar sentido naquelas palavras.
A cigana logo explicou:
-Nasci
cigana, a vida me fez bruxa.
-Eu nasci
menina, e a vida nada fez de mim - Malia respondeu, sem muito pensar.
-A vida
apenas apresenta os caminhos, criança. Suas pernas devem segui-los.
Ela falava,
sem nunca deixar de remexer seu caldeirão, com movimentos tão naturais que eram
quase imperceptíveis. Dentro dele, borbulhava uma mistura de aparência
cremosa e cada vez mais fumacenta. O aroma adocicado já era quase sufocante.
-O que é
isso? - perguntou Malia, pondo-se na ponta dos pés para espiar dentro
do caldeirão, mas tomando cuidado para não aproximar-se muito dele.
-É um
cozido de paixões.
-E para
que serve?
-Para
inebriar os desafortunados que não conhecem a intensidade das paixões desse
mundo.
-Eu não
sei nada de paixões - Malia respondeu - mas não acho que eu seja uma
desafortunada por isso.
Se Malia
tivesse prestado atenção, talvez teria notado um leve arquear de sobrancelhas
da cigana ao ouvir aquela resposta.
De fato,
Malia só conhecia a paixão dos livros, e achava tudo aquilo uma grande
bobagem. Paixões ardentes e enlouquecidas, mas irremediavelmente
arquitetadas por quem as escrevia, encerradas em páginas amarelecidas de
livros velhos. Paixões invariavelmente condenadas à morte, se não pelas
ações dos personagens, pela pena de quem as escrevia.
A verdade
era que Malia não tinha vontade alguma de conhecer uma paixão assim, com data
para acabar, mesmo que fosse pelo encantamento de uma bruxa.
-O que eu
queria mesmo era uma paixão sem final - a garota disse por fim,talvez esperando
que a cigana pudesse ter perscrutado seus pensamentos.
A mulher
descansou o bastão com o qual remexia o caldeirão fumegante e, com um leve
gesto, apagou as chamas sobre o qual ele repousava.
-Deixe-me
ler sua mão, minha querida - disse ela brandamente, aproximando-se de Malia.
A menina
teve medo, mas sentiu-se impelida a obedecer.
Com sua
longa unha pintada de dourado, a cigana riscou delicadamente a palma rosada.
Malia continha a respiração, enquanto aguardava a compreensão daquela alma
que lia o mundo. Depois de alguns segundos sem nada dizer, a cigana fitou
a menina com seu olhar inquisitivo de sapiência muito antiga. Pousou a mão
em concha sobre a mão que Malia lhe estendia e, por fim, fechando os
olhos, murmurou um encantamento curto.
Malia
sentiu um leve peso na palma da mão. Quando a cigana soltou-a, ele pode ver
uma pequenina semente azulada. Aproximou-a dos olhos para enxergá-la
melhor, curiosa:
-O que é
isso?
-Um
presente: a semente de um sentimento eterno. Um sentimento que vive do seu
próprio existir, germinando nos corações dos humildes e enraizando-se nas
almas puras.
Malia não
entendeu bem. Ainda segurando a semente bem próxima aos olhos,
perguntou, desconfiada:
-E por
acaso existe paixão assim?
A cigana
pegou novamente a mão de Malia, fazendo-a apertar com firmeza a semente, como
se lhe entregasse um tesouro. Sorriu um último sorriso cintilante, respondendo
antes de desaparecer em meio a fumaça rosada e a chamas que não ardiam:
-Não,
minha menina. O nome disso é amor.
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